Depois de séculos, o sofrimento humano continua um mistério – sobretudo das crianças. Desde os textos mais primitivos, explicação alguma teve força de calar o lamento dos judeus. Ao olharem em retrospectiva as monumentais tragédias de pessoas, famílias e gerações, eles nunca se aquietaram”. Ricardo Gondim.
por Ricardo Gondim
A narrativa bíblica reconhece o sofrimento humano como grosseiro, bárbaro, cruel. Em seus dois testamentos, episódios comuns procuram descrever traição, alheamento, tolice e maldade como responsáveis por dores, angústias, perplexidades.
Nos textos do Pentateuco, sofrimento tem a ver com bênção e maldição; e elas dependem fundamentalmente do cumprimento da lei. Deuteronômio 28 é central, pois atrela à obediência da lei toda espécie de bênção; como também afirma que males diversos virão caso os mandamentos sejam descumpridos.
Se algum judeu quisesse viver sem grandes problemas que cuidasse, então, de observar os pormenores mínimos da Torá. Obviamente, a garantia de que obedecer traria uma vida segura, não se sustentou. No Salmo 44 o escritor briga com Deus. Ele diz que o Senhor vendeu o seu povo por uma ninharia e nada lucrou com isso. Alega ainda: Israel vinha cumprindo a lei, mas não adiantou nada: Tudo isso aconteceu conosco, sem que nos tivéssemos esquecido de ti, nem tivéssemos traído a tua aliança. Nossos corações não voltaram atrás, nem os nossos pés se desviaram da tua vereda. Todavia, tu nos esmagaste e fizeste de nós um covil de chacais e de densas trevas nos cobriste. [17-19].
Após o exílio babilônico, várias teorias se espalharam em busca de explicar os motivos pelos quais Deus abandonou Israel nas mãos de seus inimigos. A menina dos olhos de Deus não podia ficar à mercê de povos idólatras. O livro de Jó foi escrito nesse período como uma tentativa de compreender porque o justo sofre; é uma poesia em que as pessoas erram por tentarem entender as decisões de Deus. A mulher de Jó, seus amigos e o próprio personagem buscam respostas, mas acabam sem alcançar as razões de Iavé. Por que ele age tão sem critérios na distribuição dos seus favores e castigos? O justo, temente a Deus, sofre. Seus filhos morrem sem que ninguém saiba ao certo os motivos. Por que o Senhor de toda criação apostaria com o adversário? Por que os filhos padecem na trama em que o pai está envolvido? Eles não eram a descendência de um justo?
Jó não se aquieta. Rebela-se, esperneia contra a sorte e depois de expor sua revolta, ouve Deus alongar um discurso, mas sem razoabilidade. Os porquês dos atos divinos continuam ilógicos.
Depois -ou simultaneamente – desse livro poético, começaram circular os textos que comporiam o livro do Eclesiastes; uma obra mais na linha sapiencial.
O Eclesiastes é pessimista; consequentemente, um texto fatalista. Em diversas ocasiões seus autores (biblistas consideram que o Eclesiastes é coletânea de textos e não a produção de uma só pessoa) se parecem precursores do niilismo moderno:
Refleti nisso tudo e cheguei à conclusão de que os justos e os sábios, e aquilo que eles fazem, estão nas mãos de Deus. O que os espera, se amor ou ódio, ninguém sabe. Todos partilham um destino comum: o justo e o ímpio, o bom e o mau, o puro e o impuro, o que oferece sacrifícios e o que não oferece. O que acontece com o homem bom, acontece com o pecador; o que acontece com quem faz juramentos, acontece com quem teme fazê-los. Este é o mal que há em tudo o que acontece debaixo do sol: O destino de todos é o mesmo. O coração dos homens, além do mais, está cheio de maldade e de loucura durante toda a vida; e por fim eles se juntarão aos mortos [9:1-3].
Para o Eclesiastes a vida é absurda. Deus não capitaneia os eventos já que a existência não distingue os bons cumpridores da Torá, dos ímpios.
Essas três respostas – obediência da Torá, Jó e Eclesiastes – podem ser consideradas esforços primitivos do que mais tarde Leibniz chamaria de teodiceia – a tentativa filosófica de responder ao impasse de “se Deus é bom e todo poderoso e não acaba com o sofrimento, então ele não é bom, ou não é todo poderoso”.
Depois de séculos, o sofrimento humano continua um mistério – sobretudo das crianças. Desde os textos mais primitivos, explicação alguma teve força de calar o lamento dos judeus. Ao olharem em retrospectiva as monumentais tragédias de pessoas, famílias e gerações, eles nunca se aquietaram. Daí Auschwitz representar um marco decisivo na espiritualidade judaica. Diz-se que depois dos fornos de cremação, concepções sobre Deus precisam ser revistas. Desde o exílio babilônico, passando pelos pogroms da Idade Média e por fim o holocausto nazista, não era mais possível pensar em Deus como um maquinista que insiste em pilotar o trem da história. Como continuar a imaginar Deus, querendo – ou permitindo – o holocausto?
Creio na necessidade de evitar pelo menos duas posturas diante do mal.
- 1. Não podemos fugir. Colocar o sofrimento na conta dos mistérios insondáveis da divindade, não resolve. Quando nos vemos em acidentes trágicos [aleatórios], evitar a realidade parece ser um consolo. Dizer que infortúnios são mistérios, e que a melhor resposta é resignar-se, acaba cobrando um preço alto anos depois. Fé não significa aceitar o inaceitável. Em muitos casos, o sofrimento nos vem como resultado da ação de pessoas, governos e sistemas perversos. A passividade de afirmar que Deus tem seus motivos, pode perpetuar a maldade. Demolir sistemas que promovem a morte requer ousadia. Jó ensina e indagar e a resistir, internamente, o sofrimento. Alguém já me provocou: “De onde vem sua petulância de querer repensar o que a teologia já sistematizou? Não me considero petulante. Creio, apenas, que não é pecado enfrentar o que dava uma falsa sensação de segurança. Nossas convicções devem ser testadas, exatamente, na dor. Fé suporta questionamentos difíceis. Se alguma certeza não se sustentar diante do feroz inquiridor, talvez ela não mereça continuar. Perguntas podem suscitar novas perguntas e com elas, mais dúvida. A dúvida fortalece a fé. Mesmo que continuemos sem respostas definitivas, vale aprofundar nossas angústias. Leibniz afirmava que a percepção de um Deus que encobre seus atos, o torna pior do que Calígula. O imperador romano escrevia suas leis em letras minúsculas e mandava publicá-las em lugares tão altos que ninguém as conseguisse ler.
- 2. Não podemos tentar camuflar nossas dúvidas com frases piedosas. Repetidas vezes o debate sobre o sofrimento humano se esvazia antes que se consiga expor os conteúdos que nos inquietam. Alguns têm medo de magoar Deus e se encolhem. Outros evitam brigar por temerem que a indagação mais aguda os fará apostatar da fé. As verdades continuam, assim, estabelecidas por mero sentimentalismo. Essa piedade também pode acalmar diante da dor, mas ferverá por anos até explodir como ódio contra Deus.
Jesus, ciente dos primitivos arranjos teológicos do judaísmo, descartou a lógica de que só os obedientes eram abençoados. Ele admitiu que bons e maus são alvos do amor de Deus. Ele também advertiu os discípulos sobre tribulações, perseguições e traições. Se lírios e pardais lembravam o cuidado de Deus, guerras e fome não deixariam esquecer o tamanho da iniquidade humana. Ele mostrou Deus não como o castigador celestial, mas como nosso amigo. Com ele aprendemos que viver é ao mesmo tempo magnífico e perigoso.
Soli Deo Gloria
Ricardo Gondim é escritor e teólogo, presidente da Convenção Betesda Brasil. E-mail: [email protected]