“Quando imaginamos a história dos heróis em geral somos levados a um olhar para o glamour, para uma possível grandeza de uma determinada figura histórica; mas, na verdade, a vida em geral revela que em grande medida há muito mais ilusão e manipulação em torno da história dos heróis, quando na verdade o contexto vivido por tais “heróis” muitas vezes revela outras histórias em seu entorno que foram silenciadas”. João Nunes da Silva
João Nunes da Silva
Doutor em comunicação e cultura contemporâneas, Mestre em Sociologia e professor da UFT Campus de Arraias. Trabalha como projeto em cinema e educação.
O novo filme do diretor Marcelo Gomes, Joaquim (2017), é na verdade uma desconstrução do mito Tiradentes. Estamos acostumados com a chamada história oficial que tem “ensinado” durante muito tempo sobre os heróis da pátria Brasil a partir de uma perspectiva elitista de modo a silenciar e negar as lutas e organizações diversas do povo brasileiro, como a dos índios e negros submetidos à escravidão.
Durante muito tempo a escola tem trabalhado a história do nosso país a partir dos heróis criados pelas elites, isto é, a partir dos vencedores. A começar da colonização se passou a idéia de que os bravos e viris colonizadores chegaram à nossa terra para trazer a civilização, especialmente por meio de colonização dos nativos que aqui já viviam.
Ensinou-se, por exemplo, que os Bandeirantes foram grandes homens que se embrenharam nas matas selvagens pelo interior do Brasil para fins altruístas, quando na verdade foram grandes escravizadores e matadores de seres humanos, batizados pelos colonizadores de índios. Tudo aconteceu com o principal objetivo de se apossarem das riquezas minerais aqui existente.
É até verdade que determinados bandeirantes constituíram cidades tais como São Paulo (SP), Ouro Preto, Diamantina (MG), Arraias, Paranã, Natividade, entre outras aqui no Tocantins e em Goiás, mas, tudo conforme os interesses de dominação perpetuados até hoje.
Assim foi com a história da Inconfidência Mineira, liderada por Joaquim Jose da Silva Xavier, o Tiradentes, que se tornou mártir na luta contra a exploração portuguesa. Que houve luta contra a exploração perpetrada pelos colonizadores não tenho dúvida ter acontecido, e até mesmo que o Alferes Joaquim tinha lá suas razões.
A questão é o que havia de fato em torno de Tiradentes e quais atores fizeram parte daquele contexto da inconfidência cuja história tem sido silenciada? Por exemplo, como viviam os negros, os índios, os camponeses? Que sentimentos estavam presentes na vida do próprio Joaquim que fizeram com que se envolvesse na luta pela libertação do jugo de Portugal?
É isso que o filme de Marcelo Gomes tenta nos trazer a partir dos possíveis bastidores, das lutas internas envolvendo branco, negros e índios em meio à caçada pelo ouro que alimentava a sede pelo poder, a organização dos negros em quilombos, o papel da Igreja e a participação do que poderíamos chamar de elites da época numa colônia que já ansiava pela independência.
O filme Joaquim desconstrói o mito criado sobre Tiradentes e favorece ao espectador um olhar humano sobre o homem Joaquim Jose da Silva Xavier e o ambiente no qual viveu. Com isso, permite um olhar crítico sobre os bastidores da Inconfidência Mineira, que em geral não teve muita coisa a vê com o que foi construído pela história oficial.
Joaquim, o filme, também oferece ao espectador a possibilidade de refletir sobre as condições de vida da época, especialmente sobre as dificuldades diversas para se manter em meio às adversidades, como, por exemplo, a crueldade e a rudeza da vida nos garimpos, as relações sociais estabelecidas, os amores e os dissabores, as condições de higiene, os sonhos e os lamentos, a necessidade de se manter vivo diante da crueldade e da ganância num ambiente onde as condições já revelavam os mais diversos instintos e virtudes humanas.
Quando imaginamos a história dos heróis em geral somos levados a um olhar para o glamour, para uma possível grandeza de uma determinada figura histórica; mas, na verdade, a vida em geral revela que em grande medida há muito mais ilusão e manipulação em torno da história dos heróis, quando na verdade o contexto vivido por tais “heróis” muitas vezes revela outras histórias em seu entorno que foram silenciadas.
Sem dúvida, o filme Joaquim é uma obra fundamental para trabalhar nas escolas e universidades, principalmente por apresentar agora uma narrativa que permite um olhar mais humano e crítico sobre a história do Brasil. Com isso, subsidia novas discussões sobre o modo como a sociedade brasileira foi estruturada conforme os interesses das elites que se estabeleceram no poder até os dias de hoje.