“O outro bandido, por algum motivo, viu que aquele Nazareno era diferente. Mesmo coberto de hematomas e desfigurado pela brutalidade, ele transparecia uma dignidade ímpar no olhar, uma grandeza única nas palavras, uma gentileza divina nas reações – devia ser rei de algum lugar. “Lembra-te de mim quando entrares no teu reino”. Correu um boato de que esse rapaz se chamava Dimas. Jesus deu-lhe a mais alvissareira de todas as notícias: “Ainda hoje estarás comigo no Paraíso”. Ricardo Gondim.
Ricardo Gondim
O cenário foi surreal. Dantesco. Aqueles eventos eram comuns. O mundo antigo estava habituado a eles. Contudo, a violência e o descaso com a vida naquele dia obtiveram contornos únicos – e desdobramentos eternos. Picasso e Fellini não conseguiriam retratá-los.
Depois de um julgamento apressado nas caladas da noite, três homens passaram por uma sessão de tortura. Flagelados com 39 chicotadas, os três sofrem bofetes, pontapés e escarros. A noite foi longa. As horas se arrastaram. Sempre que há requintes de crueldade os relógios caminham lentos.
Soldados profissionais amarraram as vítimas às traves em que seriam crucificados. No pescoço de cada um pendia uma placa descrevendo o crime que cometeram. Eles se movem pelas ruas apertadas de Jerusalém – que ficaram conhecidas como Via Dolorosa.
Um dos sentenciados não resistiu e tombou. O martírio tornou-se insuportável. Ele vinha sofrendo um estresse inominável desde que prenunciou o que lhe aconteceria; anos depois seus amigos contaram que ele chegou a suar sangue em um horto.
A procissão seguiu até um monturo de lixo. O cheiro fétido se misturava com a fumaça, daí o lugar começar a ser descrito como o Monte da Caveira. O calor do dia tornava o ar nauseante. A sentença, irrevogável, tinha o selo de Roma e os soldados já conheciam os protocolos. A morte também precisa obedecer certos ritos.
Os três se deitaram sobre o mastro e estenderam os braços na trave que carregaram. Aqueles foram os últimos segundos de descanso. Marretas fixaram o punho de cada um com enormes pregos. A dor foi lancinante. Eles deviam agonizar lentamente para que a mensagem ficasse clara aos habitantes daquele pedaço remoto do mundo: “Roma não admite insurreição de qualquer espécie”.
A cada martelada alguns cavalos relincharam. A princípio ninguém ousou falar coisa alguma. A antessala da morte sempre constrange. Com cordas, os carrascos levantaram as três cruzes. As estacas caíram nos buracos com um solavanco. Pedras davam a sustentação necessária para que ali permanecessem por alguns dias. Os três penderam para a frente. Os rasgos provocados pelas 39 chicotadas não permitiam que eles se encostassem na madeira.
Alguns ouviram Jesus de Nazaré dizer alguma coisa. Ele era o condenado do meio. Seus lábios mal se mexeram. Os mais próximos afirmam que ele pediu a Deus que perdoasse todos os envolvidos. “Eles não sabem o que fazem”.
Alguns representantes do clero, no afã de mostrar autoridade, gritaram: “Salvou os outros, que salve a si mesmo”. Mais além, um dos religiosos visivelmente transtornado de ódio, também falou: “Se é o Cristo, que mostre seu poder. Ninguém deseja um Cristo que não tenha capacidade de vencer um mero pelotão de soldados romanos”.
Um dos criminosos se desesperou. Ele esperava um último milagre. “Tome alguma atitude, por você e por nós”. O outro bandido, por algum motivo, viu que aquele Nazareno era diferente. Mesmo coberto de hematomas e desfigurado pela brutalidade, ele transparecia uma dignidade ímpar no olhar, uma grandeza única nas palavras, uma gentileza divina nas reações – devia ser rei de algum lugar. “Lembra-te de mim quando entrares no teu reino”. Correu um boato de que esse rapaz se chamava Dimas. Jesus deu-lhe a mais alvissareira de todas as notícias: “Ainda hoje estarás comigo no Paraíso”.
A morte se avizinhou. Jesus agonizou. Mas lembrou do Salmo que aprendera ainda menino: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” Aquelas palavras expressavam o clamor de Israel por séculos – e ele as tomou para si. Antes que o desespero se antecipasse ao último suspiro, o filho de Maria buscou forças para encher o Calvário com a sua voz: “Está consumado. Em tuas mãos entrego o meu espírito”.
O Calvário, seco e violento, continua a representar a humanidade inteira. Ali está um recorte de toda a história. Deus e a condição humana se encontraram em Jesus. Pelos milênios esta cena trouxe, paradoxalmente, esperança para escravos, vilipendiados e destruídos. A morte do Filho de Deus tornou-se inspiração e recurso para desesperados. E ele é a salvação de incontáveis – minha, inclusive.
Soli Deo Gloria
Ricardo Gondim é escritor e teólogo, presidente da Convenção Betesda Brasil. E-mail: [email protected]