por Gaudêncio Torquato
Daqui a sete meses, dará adeus ao poder uma das maiores líderes da política de todos os tempos: a mulher que em 22 de novembro de 2005 foi anunciada pelo então presidente do Parlamento alemão, Norbert Lammert, como a chefe do Governo da Alemanha: Ângela Merkel, uma doutora em química quântica e também formada em física, que cresceu sob o regime comunista da Alemanha Oriental.
Com quase 16 anos de poder, deixa o cargo sob os aplausos de todo o povo alemão, que festeja com orgulho a mulher simples que não usa vestidos de luxo, não tem empregadas domésticas, mora em modesto apartamento, faz comida com o marido, sóbria, modesta, sincera, sem dribles na linguagem.
– Chanceler, estou vendo que a senhora não troca muito de vestido, não é mesmo?
– Caro jornalista, eu sou funcionária pública, não sou modelo.
Assim a líder que atravessou um imenso corredor de crises, como o colapso do Lemon Brothers, em 2008, que levou a economia mundial ao caos, a crise de imigração, a cisão na União Europeia, as tensões constantes com a França tendo como pano de fundo as posições sobre o futuro da Europa e, mais recentemente, a pandemia da Covid-19, sendo essa crise sanitária a mais difícil de administrar, segundo seu balanço de governo.
Ângela Merkel pode não ser carismática, não brilhante no palco da oratória. Não usa a grandiloquência para adornar seu cotidiano. Mas é altamente confiável, uma mulher flexível, podendo mudar de opinião se as circunstâncias assim o determinarem. É o caso se sua posição pessoal contra a união homoafetiva. Sempre se posicionou contra, mas, em 2017, afirmou que não impediria que o tema fosse colocado em pauta no Parlamento. “Cada parlamentar deve votar de acordo com suas consciências”. A lei foi aprovada por 393 por 226 votos. Da mesma forma, seu partido, o CDU (União Democrática Cristã) foi contra o fim do serviço militar, também aprovado. Essas derrotas não abalaram seu prestígio, fato que pode-se atribuir à expressão recorrente: “vocês me conhecem”.
Chegou-se a verbalizar seu estilo de governar com os verbetes: ‘merkelizar’, ‘merkiavelismo: o modus faciendi’ da política; mesmo de forma hesitante, sem demonstrações de força ou conflitos diretos, atinge seus objetivos. A propósito, o neologismo “zu merkeln”, segundo texto da BBC, “significa algo como não ter uma opinião contundente sobre determinado assunto, ser passivo, hesitante. Características que, na política, podem ser virtudes ou defeitos, a depender da situação”. Outro conceito que banha seu perfil é o de Mutti, mãezinha em alemão, aquela que protege.
O fato é que a índole de Ângela Merkel foi a chave para abrir portas entravadas. Mesmo sem maioria no Parlamento, governou com uma grande coalizão, o que explica mudanças de abordagens em algumas matérias. Lançou intensa campanha para mudar o perfil energético da Alemanha, dando um prazo até 2022 para acabar com as 17 usinas nucleares do país. A Alemanha vem batendo recordes no uso de energia renovável.
A imagem de mãe e protetora emerge, por exemplo, na abertura das fronteiras, o que deu à Alemanha o primeiro lugar no ranking de acolhimento aos imigrantes, cerca de 1,3 milhão. E qual foi a expressão-chave para esta política? “Nós conseguiremos”. Que lembra o “nós podemos”, de Obama.
Zelo pelo dinheiro do contribuinte – eis outra estaca na vasta seara da chanceler. “Não daremos dinheiro a países que não conseguem controlar suas contas”. Uma defesa do tesouro alemão. Defesa da indústria e do mercado de trabalho. A economia alemã vive uma fase de crescimento. E, por último, a mais grave crise de seu governo, a pandemia, que considera o maior desafio após a II Guerra Mundial. “Levem a sério”, alertou Merkel. E vieram os lockdowns. A população aceitou a orientação da líder, que chegou ao ponto de emocionar a população: “pode ser o último Natal que você passará com seus avós”.
Eis aí um breve relato sobre uma das grandes condutoras da política na contemporaneidade. O que os governantes poderão aprender com ela? Ora, se absorvessem parcela, mesmo mínima, dos valores que a identificam, já passariam no teste da governança. Humildade, flexibilidade, simplicidade, despojamento, modéstia, sinceridade, defesa do contribuinte, responsabilidade, linguagem adequada, seriedade no trato dos problemas, senso do dever.
E, sobretudo, capacidade de saber o espírito do tempo. Sem viés político-ideológico. A grandeza de um país depende, e muito, da nobreza e da dignidade de seus dirigentes.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de comunicação Twitter@gaudtorquato