Ricardo Gondim
A pequena cidade de Muritiba aparece como um ponto de alfinete nos grandes mapas da Bahia. Pouco acontecia ali nos idos de 1847. Foi nesse povoado, entretanto, que nasceu num dia qualquer de 1847, Antônio Frederico de Castro Alves; considerado o maior poeta do romantismo brasileiro. Sua pena questionou, em Navio Negreiro, se Deus sofria ou era indiferente à sorte dos escravos.
O jovem poeta chorou em versos. Milhões de negros, arrancados do chão africano, seguiam, feito bichos, para o inferno. Os canaviais, as minas de ouro e diamante e os cafezais do Brasil sugavam até a última gota do sangue deles. Ele não se conformava. Ainda hoje, não consigo ler Castro Alves sem que alguns dos meus músculos se retesem e minha boca seque.
Era um sonho dantesco… o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros… estalar de açoite…
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar…
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura… se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?…
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa…
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!…
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro… ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!…
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
Só um demônio onipotente seria capaz de orquestrar tanto mal. Penso que, retirados os freios morais e de posse de poderes absolutos, todos podemos nos tornar monstros de perversidade. A capacidade de iniquidade dos humanos se estende para além da imaginação mais perversa. Em nome de reis, de projetos econômicos, da conquista de terra e da manutenção de uma “raça” trucidaram fetos ainda no ventre das mulheres, idosos acamados e mulheres portadoras de deficiência. A própria religião produziu horrores em nome de Deus. O historiador Will Durant detalhou alguns ritos de tortura durante a Inquisição:
A vítima era imobilizada e depois vertiam-lhe água na garganta até quase sufocá-la; outras vezes amarravam cordas em volta dos braços e das pernas, que iam sendo apertadas a ponto de cortarem a carne até o osso. Podia ser flagelado com um ou 200 açoites até “o limite de segurança”. Chegados à praça preparada para a execução, os que tinham confessado eram estrangulados, depois queimados; os recalcitrantes eram queimados vivos. As fogueiras eram alimentadas até não sobrar nada dos mortos além das cinzas, que eram espalhadas por campos e rios. Os padres e os espectadores voltavam para seus altares e lares, convencidos de que se tinha feito uma oferenda propiciatória a um Deus insultado pela heresia.
Uma cena do filme “A Lista de Schindler” me causou asco. É quando o graduado oficial nazista pratica tiro ao alvo no campo de concentração. Ele mira um judeu. O homem, feito animal selvagem, corre em vão. É abatido, friamente, antes que alcance um esconderijo. A banalidade do mal, como descreveu Hannah Arendt, chega a ser corriqueira em situações extremas. Poucas décadas depois, o mesmo se repete na Palestina; adolescentes se tornaram alvo de soldados israelenses entediados.
Diz-se que a escravidão acabou mas continuamos maculados por atrocidades. Os últimos 50 anos foram horrorosos, inomináveis.
Não há como calcular a profundidade maligna do genocídio de Ruanda. Impossível recriar as cenas em que Hutus e Tutsis se enfrentaram e 800 mil Tutsis foram trucidados em apenas 45 dias – com golpes de machado, facão e foice. Pior: saber que líderes religiosos ajudaram na orquestração de alguns dos massacres de Ruanda. Sobram relatos macabros: o Khemer Vermelho transformou o Camboja em cemitério a céu aberto, com cerca de 2 milhões de mortos. Os Estados Unidos jogaram bomba napalm sobre vietnamitas. O Estado Islâmico degola, executa e decepa em ritos sumários – e ainda exibe os assassinatos na internet.
O Nordeste sofre com a seca. O povo olha para o céu limpo e espera um milagre. A maioria das vezes, não há a mínima chance de se cumprir a promessa evangélica de que virá chuva sobre justos e injustos. Luiz Gonzaga cantou o lamento nordestino em “Asa Branca: Quando olhei a terra ardendo qual fogueira de São João, Eu perguntei a Deus do céu por que tamanha judiação. A causa de tanto sofrimento nem sempre é evidente. A penúria nordestina se deve, em grande parte, à gula de riqueza e poder das oligarquias que dominam a política. Dinheiro roubado e impostos sonegados matam com a mesma violência de uma granada ou bala de fuzil.
A miséria nordestina flagela – negros sofrem mais. Os efeitos da pobreza são vastos e inclementes. Já estive em enterro de anjos (chamam crianças, que morrem de fome, de anjos). Me senti anestesiado ao ver como meninos e meninas, desde cedo, se acostumam com o sofrimento. É comum assistir às próprias crianças carregarem um “anjo” numa caixa de sapatos, rumo ao cemitério.
Diante do horror, não raro, queremos evitar a realidade. Difícil admitir que, com todo o avanço tecnológico e com todo o Iluminismo, ainda vivemos em um mundo violento, bárbaro, sanguinário e inclemente. Os vocábulos fracassam e a própria arte é incapaz de expressar o tamanho da perversidade humana. Picasso não conseguiu pintar, com Guernica, o terror da guerra. Os filme “Roots” e “Doze anos de escravidão” mostraram apenas um pedaço do sofrimento de Kunta Kinte e Solomon Northup.
Não quero esquecer: o sofrimento do africano pobre não cessou. Migrantes se arriscam por mares turbulentos em busca de asilo na Europa. No interior da África, os efeitos nefastos do Colonialismo condenam milhões à miséria mais abjeta.
Castro Alves, de novo, com a palavra:
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! …
Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!
Soli Deo Gloria