por Redação, via Público.pt
Desde que as aulas recomeçaram em Portugal, a 10 de Janeiro, o número de casos de infecção pelo SARS-CoV-2 entre os mais novos tem vindo a aumentar. Nos últimos nove dias, entre 10 e 19 de Janeiro, as faixas etárias dos zero aos nove anos e dos dez aos 19 anos somaram um total de 88.633 casos — o que corresponde a cerca de 9848 casos por dia entre as crianças e jovens.
O grupo etário que registou o maior aumento, durante o mesmo período, foi o dos zero aos nove anos, com mais 41.934 casos, o que corresponde a um aumento percentual de 37%. Já a faixa etária dos dez aos 19 anos contabilizou, nos últimos nove dias, 46.699 infectados (um aumento de 26%), segundo as contas do PÚBLICO, tendo por base os dados divulgados diariamente pela Direção-Geral da Saúde (DGS).
O epidemiologista Manuel Carmo Gomes associa este aumento à abertura das escolas. “Ao contrário do que algumas pessoas dizem de que não há transmissão nas escolas, o resultado está à vista”, explica ao jornal Público. Os dados do especialista confirmam que o número de casos na faixa etária dos zero aos cinco anos e dos seis aos 11 anos está a aumentar rapidamente.
Nos últimos dias, verificou-se também um aumento das infecções no grupo dos 11 aos 17 anos. Pelo contrário, dos 18 aos 24 anos, nos jovens adultos que, regra geral, ainda não têm filhos, o número de casos tem vindo a descer — anteriormente, este “era o grupo que tinha uma incidência mais alta”.
Trazer o vírus para casa
“As crianças infectam-se entre elas na escola e depois trazem o vírus para casa”, explica o epidemiologista, acrescentando que a infecção pode depois passar “para os pais e eventualmente para os avós”.
O vice-presidente da Associação de Médicos de Saúde Pública, Gustavo Tato Borges, reforça que o aumento de casos nas crianças e jovens “condiciona a vida na escola, a vida profissional dos pais e também a saúde de todas as pessoas que coabitam com estas crianças”. “Esse aumento de casos nas faixas etárias mais novas condiciona um aumento de casos nas faixas etárias mais elevadas e tudo isto, em conjunto, condiciona também um aumento dos internamentos e da mortalidade. Está tudo interligado e acaba por ser mais uma acha na fogueira que a Ômicron veio acender”, afirma.
Carlos Antunes, matemático da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que tem monitorizado os números da pandemia, assegura ao Expresso que um dos “motores” deste aumento de casos nos últimos dias tem sido a faixa etária dos mais novos, “com os casos a mais do que triplicar nas crianças entre os zero e os nove anos em apenas uma semana”. O especialista não exclui um “agravamento da situação, dada a dimensão da incidência”, e admite mesmo que Portugal continue a assistir a um crescimento de casos, adiando o pico da quinta vaga — ao contrário do que tinha sido noticiado.
7,2 milhões de infectados até Abril
Manuel Carmo Gomes faz uma projeção: imaginando que a variante Ômicron infecta 40 mil pessoas por dia em Portugal e que há um “factor de ampliação” de 1,5 (que contempla os casos que não sabemos que ocorrem), em 120 dias, ou seja, até ao final de Abril, teremos 7,2 milhões de pessoas infectadas no país. “A maioria da população portuguesa, nos próximos meses, vai entrar em contato com o vírus”, conclui.
O especialista salienta que, embora “a gravidade da doença não tenha nada que ver com as anteriores versões do vírus” — com um impacto menor nos cuidados intensivos —, “como há um número muito grande de casos, isso tem impacto hospitalar infelizmente e tem impacto nos cuidados de saúde primários”.
Gustavo Tato Borges refere, por sua vez, que “este é um jogo de números”. “Tivemos um aumento de casos tão astronómico que vamos ter sempre mais risco de ter mais pessoas internadas no hospital”, diz. Salienta, porém, que, “neste momento, a grande maioria das pessoas que estão internadas estão com doença controlável, sem necessidade de cuidados intensivos”.
O vice-presidente da Associação de Médicos de Saúde Pública lembra que a recomendação que fez anteriormente, “para que o início das aulas do segundo período fosse em ensino à distância, era exatamente porque estava a prever que isto iria acontecer”. Atualmente, diz, “há imensas crianças infectadas, imensos profissionais da educação infectados, escolas a não terem capacidade para poderem estar abertas, porque não têm recursos humanos, e professores a queixarem-se que não conseguem dar matéria nova, porque os alunos estão constantemente” a entrar e a sair da escola.
Escolas em situação “complicada”
“A situação está a ser muito complicada, de forma transversal, no país inteiro”, começa por explicar Manuel Pereira, presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares (ANDE).
“A maior parte das escolas tem uma enorme quantidade de alunos, em termos percentuais, todos os dias a ficarem em casa”, acrescenta. Destaca que os dados a que teve acesso (embora admita serem pouco rigorosos) indicam que “todas as escolas, neste momento, têm mais de 5% dos seus alunos em casa”. “Estamos com problemas, porque temos muitas turmas, nomeadamente do primeiro ciclo, em que o número de alunos que está em casa, porque testaram positivo ou porque coabitam com pessoas que testaram positivo, é bastante elevado”, sublinha.
O fato de o período de isolamento ter sido reduzido, de acordo com as normas da DGS, faz também com que os alunos fiquem menos tempo em casa e haja uma maior rotatividade. “Estão uns a retornar à escola e outros a ir [para casa]”, diz Manuel Pereira.
Além disso, os próprios professores e educadores estão também a ficar infectados. “Há turmas do primeiro ciclo e pré-escolares em que há muitos alunos que testaram positivo e em que o próprio professor ou educador também testou positivo”, afirma. Porém, o presidente da ANDE admite que, na sua maioria, os adultos estão vacinados e a percentagem de professores ou funcionários positivos “não é tão elevada” comparativamente com os alunos.
Prejuízo no aprendizado
A maior dificuldade é evitar que os alunos fiquem “para trás” na matéria. “Há necessidade de apanharem [a matéria] em casa ou recuperarem, quando regressam [à escola] e isto implica uma sobrecarga de trabalho”, afirma Manuel Pereira, destacando o “cansaço” dos docentes. “Estamos seriamente preocupados, porque quanto mais tempo durar este período de intranquilidade, mais o sucesso dos alunos é posto em causa.”
Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas, admite que “já se está a sentir” o impacto deste aumento de casos nas escolas, algo que diz ser “expectável”, até porque o uso de máscara só é obrigatório no interior das escolas para as crianças a partir dos dez anos e só a partir de meados de Dezembro é que as crianças começaram a ser vacinadas contra a covid-19.
“Penso que essa situação de alunos que estão em casa e outros na escola é generalizada e as escolas estão adaptadas para dar resposta a esta realidade. O ensino remoto de emergência é uma das estratégias”, diz. Salienta ainda que é necessário haver um “contato permanente dos professores com os alunos que estão em casa”, para assegurar que “ninguém está desligado”. “Queremos estar em contato permanente com os alunos e é evidente que isso exige um esforço maior aos nossos professores e às escolas.”
Docentes e não docentes não vivem “só no interior da escola”
Sobre os casos de covid-19 em professores e funcionários Filinto Lima lembra que “as escolas não estão fora do mundo” e que os docentes e não docentes não vivem “só no interior da escola”, estando também naturalmente expostos ao vírus. Porém, garante que, até ao momento, as escolas estão “a dar uma resposta muito positiva”. “Para já, não percebi ainda que nenhuma escola tivesse atingido a linha vermelha.” Na sua opinião, o que é importante agora é assegurar que os alunos que estão em casa continuem as suas aprendizagens. “[E] lutar pelo bem-estar emocional, socialização e saúde mental dos nossos alunos e de todos nós”, observa.
Já Susana Baptista, presidente da Associação de Creches e Pequenos Estabelecimentos de Ensino Particular (ACPEEP), confirma que se tem verificado “um aumento de casos nas creches e jardins-de-infância”, que acolhem crianças dos zero aos cinco anos.
A presidente da ACPEEP atribui a subida de casos a um reforço da testagem. “Praticamente todas as semanas estamos a testar e tem-se verificado realmente um aumento a nível não só dos educadores e auxiliares, como também a nível das crianças e são quase sempre casos assintomáticos”, explica.
A situação, garante, “está a começar a ficar um bocadinho complicada nalguns estabelecimentos”. “Tenho tido relatos de salas que vão ter de encerrar, porque a educadora e a auxiliar testaram positivo e é humanamente impossível continuar a gerir uma sala com pessoas de outras salas”, conta.
Contato direto com alguém infectado
Além disso, duas situações estão “a complicar imenso o funcionamento nas creches e nos jardins-de-infância”. A primeira está relacionada com uma resistência por parte dos pais para fazerem testes às crianças que estiveram em contato direto com alguém infectado. “A testagem não é obrigatória e as direcções das escolas estão a ter bastante dificuldade em conseguir que os pais das crianças mais pequenas aceitem fazer testes às crianças que estiveram em contato direto com alguém infectado, quando não apresentam sintomas”, diz Susana Baptista, salientando que, “de acordo com as novas regras, a criança que esteve em contato direto não tem de ficar em isolamento profiláctico desde que faça um teste negativo”.
A segunda situação diz respeito ao facto de nalgumas salas a educadora e auxiliar estarem positivas e as crianças (dessas salas) com teste negativo poderem frequentar o estabelecimento, mesmo que este não tenha recursos humanos para dar resposta.
Susana Baptista apela, por isso, às autoridades que levem a cabo uma “sensibilização a todas as pessoas para que percebam como é importante testar as crianças” e que haja “a possibilidade de, em caso de surtos numa sala de aula, todos poderem ficar em isolamento durante sete dias para criar condições para aquela sala poder arrancar novamente”, com apoio às famílias.
Medidas de prevenção e reforço da vacinação
Manuel Carmo Gomes destaca que, com a reabertura das escolas, bares e discotecas, “estamos a assistir àquilo que se espera de um vírus altamente transmissível e que é muito difícil de controlar, porque tem um período de incubação muito curto”. Contudo, o especialista destaca que poder-se-á assistir, no futuro, a “uma descida abrupta do número de casos”.
Por sua vez, Gustavo Tato Borges afirma que teremos durante o “mês de Janeiro e possivelmente na primeira e segunda semanas de Fevereiro ainda números substanciais” de casos. Mas concorda que “da mesma maneira que os números cresceram de uma forma exponencial também vão descer vertiginosamente”.
Os especialistas alertam para a necessidade de manter medidas de prevenção que visam retardar a propagação. Até porque, segundo Carmo Gomes, o facto de ser “muito difícil conseguir acompanhar” a propagação do vírus não significa que “as pessoas se devem expor ou deixar infectar”.
Acelerar a vacinação de reforço
É também essencial, na visão do epidemiologista, acelerar a vacinação de reforço, embora haja “limites para velocidade a que se consegue vacinar as pessoas” e “muitos profissionais de saúde que, neste momento, estão infectados e em casa”. Tato Borges concorda que “o reforço da vacinação é a grande arma terapêutica que temos nesta fase” e sublinha que “a mesma já devia ter sido acelerada há mais tempo”.