(Ricardo Gondim) A vida se parece com um cavalo chucro. Ela não obedece prognósticos, despreza vaticínios e nunca se prende aos trilhos da lógica. Quando puxada à direita, desobedece. Se afrouxamos as rédeas e cogitamos parar, eventos súbitos nos surpreendem. Quem não se dobra à verdade de que a vida é selvagem, desperdiça enormes pedaços da existência. O esforço de encabrestar o potro selvagem chamado vida, exaure. Querer antecipar o futuro é tarefa estafante, um delírio onipotente.
Ciência e tecnologia prometem trazer as variáveis da vida sob sua tutela. Mesmo com toda conquista médica, capacidade meteorológica e poder cibernético, por mais admiráveis, estamos longe, muito longe, de subjugar o tal potro.
Mantemos uma inquietação estranha. Ambicionamos controle. Como tornar o futuro minimamente previsível? A religião se oferece como resposta alternativa. Os templos lotados atestam sua força. A necessidade humana de antecipar-se a acidentes, de prever intempéries e de se proteger da aleatoriedade, leva muitos a acessar o divino. O desencanto pós-moderno é, em grande parte, responsável pelo avivamento da crença de que resta esperar pela proteção de Deus. A lógica do javismo de Deuteronômio ensina que Deus blinda, desde que ele contemple uma contrapartida dos filhos. Quem cumprir os mandamentos, cria defesa para tudo: do ataque dos gafanhotos na plantação à vaca infértil. Devido a essa expectativa, sobejam os marqueteiros da religião, que repetem (nunca de graça): Deus coloca seus filhos debaixo de suas asas. (Onde estão as redomas de aço ao dispor dos santos?) Outros místicos prometem: Com Deus, nenhum mal acontece. Livretos repetem, ad nauseum, fórmulas para fechar o corpo, quebrar maldição, receber milagre, anular o poder do diabo, alcançar graça, neutralizar os efeitos da macumba. Jargões, decorados e esbravejados, tentam gerar uma fé com o poder de domesticar o futuro selvagem.
Muito do que se busca no milagre não passa de esforço para tornar o dia a dia mais plácido e sem sacolejos ou surpresas desagradáveis. Acontece que essa mentalidade não encontra eco na tradição cristã – nem se sustenta na realidade concreta das pessoas. Jesus jamais cogitou esse tipo de vida. O Nazareno se esforçou para mostrar que, antes de reverter a realidade, temos de mudar os conteúdos do coração. No universo conceitual do Carpinteiro, o mundo, repleto de predadores, sofre ameaça dos maus. Justos e injustos nunca se veem livres dos perigos da natureza. Viver é perigoso – arriscado.
Fé tem a ver com nossa capacidade de lidar com as diferentes fases da vida. Estações distintas compõe nossa história. Em cada uma delas – infância, adolescência, vida adulta e velhice – existem problemas. Fé se irmana à sabedoria para nos ajudar a encarar – e apreciar – essas estações em sua beleza, limitações e desafios. Devido à fé, não nos destruímos nos picos de euforia ou nos vales de tristeza – na gangorra emocional – que as muitas épocas da vida trazem.
Nossa fé tem a ver, também, com liberdade. Quais as avenidas do amanhã, sempre inédito, que decidimos andar? Reconheçamos: toda liberdade é limitada. Não nos perguntaram nossa preferência de sexo, cor da pele, hereditariedade ou lugar de nascimento. Igualmente, ninguém opta se vai ou não precisar beber água. Podemos escolher, pelo menos, a atitude que beberemos. O modo como encaramos nossa contingência pode determinar nossa qualidade da vida. Fé procura influenciar a resposta aos prêmios, ou às vicissitudes, que compõe o enredo de nossa história.
Ninguém é uma ilha. Pessoas dependem de pessoas. Para viver é preciso saber estabelecer relacionamentos. Fé repousa, assim, em um alicerce essencial: a convivência com o próximo. Nela, desenvolvemos nossa capacidade de amar e deixar-nos amar.
Como a vida é alazão arisco e indomável, vive quem respeita as fases que o tempo escancara, lida com suas flutuações emocionais e reconhece – e aceita – os desdobramentos de suas escolhas. Acima de tudo, vive quem se vê, neste vasto mundo, parte de uma mesma família.
Fé avisa ao potro: esperneie o quanto desejar, eu não desistirei.
Soli Deo Gloria