João Nunes da Silva
Doutor em Comunicação e cultura contemporâneas, Mestre em Sociologia e professor da UFT – Campus de Arraias.
No sábado, 03 de outubro, fui ao cinema do Espaço cultural, em Palmas, juntamente com esposa e amigos, assistir ao belíssimo filme Que horas ela Volta? Antes de falar sobre o filme, destaco a reforma do Cine do Espaço cultura, que por sinal possibilitou aos apaixonados por cinema um ambiente mais agradável e aconchegante.
Pois bem, vamos ao filme, que é o mais interessante mesmo desse texto. Que horas ela volta? Trata-se de um filme brasileiro, lançado recentemente; é dirigido pela cineasta Anna Muylaerte, que também dirigiu filmes como Durval Discos (2002) e É proibido fumar ( 2009), além de ter participação em roteiros como Quando meus pais saíram de férias (Cao Hamburguer, 2006) e ter participado de equipes de criação de programas como Mundo da Lua e Castelo Ra-Tim-Bum.
Que horas ela volta? conta a história de uma empregada, Val, interpretada por Regina Casé. Val é nordestina, de Pernambuco, que trabalha há alguns anos para um casal na capital paulista. Para essa vida de empregada, deixou sua filha em Pernambuco, enquanto na nova casa cuida do filho dos patrões como se fosse seu. Mas a vida de Val dá uma guinada com a chegada da filha pernambucana, que havia deixado há mais de dez anos; Jessica, a filha vai a São Paulo para tentar vestibular na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, a mais concorrida do país.
Com um misto de comédia e drama, Que horas ela volta? se mostra uma verdadeira radiografia da hipocrisia da elite brasileira ao chamar à atenção para o que se tornou lugar comum a idéia de que trabalhadores e trabalhadores domésticas, como os demais em geral são tratados ainda no Brasil como se fossem seres inferiores e, portanto, já nascem sabendo o seu lugar determinado por aqueles que mandam. Assim, o filme escancara essa idéia, revela o preconceito e a discriminação existente contra aqueles que vivem batalhando para ter o mínimo para viver enquanto sofrem várias humilhações, além de perceberem um mísero salário.
A crítica as péssimas condições de vida e de trabalho das domésticas estão presentes no filme, principalmente em cenas que mostram o ridículo quarto da empregada, o tratamento mesquinho da patroa, entre outras, que revelam a mentalidade colonialista presente ainda em grande parte da elite brasileira.
O novo filme e de Anna Muylaerte é um verdadeiro tratamento de choque sobre a realidade atual brasileira; com cenas simples, a maioria ambientada numa casa, com poucos personagens, destaca-se pelos diálogos e pela sutileza da mensagem a partir da convivência da empregada doméstica, Val e sua filha e com os patrões. Em grande parte do filme sequer precisa de fala alguma, pois, a crítica social se mostra pela beleza e inteligência contida muitas vezes apenas em alguns planos, como acontecem em alguns momentos, como, por exemplo: quando a protagonista aparece no cubículo escuro e apertado, chamado de quarto da empregada, que mal cabem a cama, o ventilador e a televisão. Em outro momento aparece a filha da empregada que havia chegado do Nordeste, sentada à mesa da cozinha, enquanto a patroa aparece de costas fazendo uma limonada para a garota.
A cena mostra a inversão de papéis, onde a patroa prepara o café para a filha da empregada. A imagem permite ao espectador perceber o mal estar da patroa, não só com a presença da filha da empregada, mas com o papel que está desempenhando no momento. Algo que, para ela, é inadmissível, pois, no imaginário preconceituoso estabelecido ao longo do tempo, a empregada sequer tem o direito de se sentar à mesa com os patrões, imagine a filha de quem “nasceu para servir”.
A chegada da filha da empregada desconstrói toda hipocrisia estabelecida pelo patronato brasileiro; a atitude de independência da filha, Jéssica, a ousadia em cursar a melhor Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, os questionamentos que levanta com a mãe doméstica, que se mostra resignada com a situação que vivia já há mais de dez anos, evidencia muito bem o momento atual que vivemos no Brasil, no qual, as elites se mostram bastante incomodadas com o lugar que as pessoas das classes populares passaram a ocupar nos últimos anos.
Por exemplo: incomoda para muitos saber que boa parte dos trabalhadores, como as empregadas domésticas, pode viajar de avião, assim como os seus patrões; isso se mostra claramente no filme quando a empregada Val decide sair do emprego, morar com a filha em outra casa ( o que demonstra independência) e fala para a filha, com o sorriso aberto no rosto, que á para trazer com urgência o neto que ficou no Recife e que ela ainda não conhecia; por isso que tinha que ser de avião.
Incomoda também, hoje no Brasil, a possibilidade de vários filhos de trabalhadores terem acesso às universidades, algo que durante muitos anos era coisa apenas para quem pertencia à elite. Em Que horas ela volta? A filha da empregada supera o filho da patroa e passa no vestibular mais concorrido. Algo considerado absurdo para a patroa, a qual teve que engolir a seco a situação.
O filme incomoda principalmente aqueles que vivem na zona do conforto à custa da exploração dos outros, como é o caso de vários patrões e patroas que oferecem um cubículo para a empregada e criam uma relação de um falso afeto, quando na verdade o que se faz presente é a demonstração de um trabalho escravo escondido por trás da falsa bondade.
Por fim, o filme Que horas ela volta? revela uma mensagem de luta pela liberdade, luta contra toda forma de exploração e discriminação tão presente nas relações sociais pautadas no patriarcalismo e no colonialismo. Não por acaso que a obra já recebeu vários prêmios, como o do Festival de Berlim (Alemanha), e do Festival de Sundance ( EUA), além de ter sido indicado para concorrer ao Oscar de 2016 de melhor filme estrangeiro.