“Lazzaro parece feliz, muito embora seja de fato objeto de exploração por todos. Tal personagem nos leva a refletir o quanto as pessoas se mostram ser más e perversas quando encontram alguém desprovida de qualquer malícia, portanto, ingênua e pura em sua natureza.” João Nunes da Silva.
por João Nunes da Silva
Doutor em comunicação e cultura contemporâneas, Mestre em Sociologia e professor da UFT Campus de Arraias. Trabalha como projeto em cinema e educação
Esses dias assisti o filme Lazzaro Felice, de Alice Rohrwacher (2018) e fiquei impressionado com o personagem que dá nome a obra. Lazzaro é um jovem simples, humilde, puro e ingênuo que vive com outras pessoas numa comunidade rural de nome Inviolate.
Lazzaro, assim com os demais, vive basicamente num sistema de escravidão sob a ordem da Marquesa Alfonsina de Luna. O jovem ingênuo não tem noção que é um escravo, bem como todos os que vivem em Inviolate. Assim todos vivem praticamente do básico, por meio do trabalho campesino, mais especificamente no cultivo do tabaco.
Devido a sua simplicidade e natureza pura Lazzaro se dedica exclusivamente a auxiliar a todos e sem pedir ou esperar nada em troca. Sua condição o faz ainda mais escravo pelos demais que o explora sem nenhum pudor. Mas, ao mesmo tempo em que assim o faz, alguns aldeões de Inviolate consideram o jovem um santo; fato que fica evidente quando passam a viver na cidade como ciganos.
A vida de Lazzaro muda com a chegada do filho da marquesa, que se torna seu amigo e o transforma em seu meio irmão, bem como, o explora tal como as outras pessoas.
A natureza de Lazzaro e a forma como ele é explorado por todos me fez pensar sobre o ser humano no mundo e sua natureza, principalmente em meio às transformações e necessidades diversas advindas com o surgimento da sociedade moderna.
Lazzaro parece feliz, muito embora seja de fato objeto de exploração por todos. Tal personagem nos leva a refletir o quanto as pessoas se mostram ser más e perversas quando encontram alguém desprovida de qualquer malícia, portanto, ingênua e pura em sua natureza.
Dizem autores diversos que a sociedade transforma o ser humano e até o corrompe, como concluiu Rousseau (1712-1778); mas isso não vale para alguém como Lazzaro, pois, por mais que passe por situações difíceis impostas pelo mundo, ele continua ali impoluto e voltado apenas para servir.
É evidente que natureza como a de Lazzaro não condiz com um “mundo cão” onde predomina a corrida pelo dinheiro e pelo poder, como é típico da sociedade erigida sob a ótica da propriedade e do capitalismo.
A experiência de vida me fez perceber claramente que não dá pra viver de forma ingênua e pura num mundo tão desumanizado pela ganância e pelo individualismo. Somente a experiência para mostrar o quanto é preciso se transformar em meio às adversidades.
Mas, no caso do personagem Lazzaro, sua natureza não muda perante as novas condições de exploração em que se encontra; ele continua ingênuo e puro a ponto de defender os seus opressores, pois, sequer demonstra ter noção da exploração que continua a viver.
Das várias lições que podemos tirar do filme uma delas é que o mundo não é lugar para os ingênuos. Todos têm seus sonhos e desejos, mas somente aqueles que se encaixam no sistema ou mesmo que conseguem perceber criticamente o sistema é que “sabem” de alguma forma lidar com esse mundo de exploração.
Lazzaro Felice é uma ótima obra para questionar e refletir sobre o nosso mundo e sobre o que fazemos de nós perante a tragicomédia da vida.