A história se passa no meio do Pantanal sul-matogrossense. Mas a trama de O Escolhido, suspense sobrenatural produzido no Brasil pela Netflix, que estreou nesta sexta (28), foi gravada no Tocantins – mais precisamente, em Natividade. A cidade colonial – a mais antiga do Estado, fundada no século 18 e tombada pelo Iphan – se transformou na misteriosa Águazul na trama dirigida por Michel Tikhomiroff.
Via Estadão
Na história, um grupo de médicos desembarca no local para vacinar a população contra uma mutação do vírus da zika. A comunidade, extremamente fechada e repleta de mistérios, recebe o grupo com violência e tenta expulsá-los dali.
Cenário muito diferente ao encontrado pela produção da série quando chegou à cidade. “Ficamos encantados tanto com o lugar quanto com as pessoas”, lembra o diretor. “As pessoas abraçaram o projeto.” A equipe passou aproximadamente três meses em Natividade, localizada a 230 quilômetros de Palmas, e foi bem acolhida pela comunidade. “Foi uma troca linda”, conta Paloma Bernardi, que interpreta a protagonista, a médica Lúcia. “Cheguei como turista e com o tempo fui me adaptando. Quando a gente viu, já era local.”
“Uma coisa que é importante é o cuidado de chegar na cidade como estrangeiro”, explica Renan Tenca, que interpreta o misterioso Escolhido, uma figura autoritária e respeitada por todos na comunidade. “Chegamos com cuidado, pedindo licença para fazer o trabalho, meio como os médicos da história. Logicamente, fomos mais bem recebidos né?”, brinca.
A escolhida
Mas como foi a escolha da cidade pela produção da série? “Quando olhamos as primeiras fotos de Natividade, ficamos encantados. Uma cidadezinha linda, colonial, que tinha tudo a ver com o que a gente tinha pensado”, conta Michel Tikhomiroff. Um fato curioso foi que a produção teve de envelhecer algumas casas e as igrejas do século 18, porque estavam muito bem conservadas. “Como a série tem um lado um pouco mais dark, mais sobrenatural, a direção de arte achou que era cabível envelhecer”, diz o diretor. Antes de irem embora, contudo, a produção deixou tudo como era antes.
O turismo ainda está se estruturando na cidade de aproximadamente 10 mil habitantes, mas a divulgação da série – que será exibida pela Netflix em mais de 190 países – é vista com esperança na comunidade. Cirene Morais, presidente do Conselho de Turismo de Natividade e da Associação de Turismo Serras Gerais (que reúne ao todo nove cidades), vê o processo como algo positivo.
“Eu tenho certeza que essa oportunidade e essa divulgação de que (a série) foi feita em Natividade é um momento de muita importância pra nós. O potencial pra gente aqui é o turismo”, diz. O maior movimento turístico da cidade é composto por excursões de escolas do Tocantins ou de estudantes de arquitetura, mas Cirene acredita que isso pode mudar. “Sou suspeita, né? Mas temos muitos lugares lindos aqui.” A equipe de filmagem concorda. “Espero que a série traga mais visitantes para Natividade”, diz o diretor Michel Tikhomiroff.
Embora a rotina de trabalho da equipe tenha sido árdua, ainda assim houve tempo para a equipe aproveitar um pouco das principais atrações da região nos momentos de lazer. “Nas nossas folgas, a gente saía visitando cachoeiras, ia almoçar na casa de moradores…”, conta Paloma. “A natureza foi nossa grande casa e um grande personagem da nossa história.”
Centro histórico
Assim que o barco deixa os três médicos Lúcia (Paloma Bernardi), Enzo (Gutto Szuster) e Damião (Pedro Caetano) em Águazul, no primeiro episódio, tem-se a primeira visão do casario colonial. A igreja matriz de Nossa Senhora da Natividade, do século 18, está bem em evidência quando Mateus (Mariano Martins) confronta os moradores que tentaram expulsar os forasteiros.
Além da igreja matriz, a Igreja de São Benedito também vale a visita. Outro ponto turístico são as ruínas da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, que começou a ser erguida pelos escravos, mas não foi concluída. Estima-se que a cidade tenha recebido cerca de 40 mil escravos, especialmente durante o ciclo do ouro. “Algumas casas ainda têm senzala”, conta Paloma. A cidade conta com algumas pousadinhas simples, alguns poucos restaurantes (o Casarão é o mais famoso) e uma sorveteria. Às sextas-feiras, uma feirinha movimenta o centro e é o grande ponto de encontro da comunidade.
Natureza
Uma série de cachoeiras cerca Natividade. Paraíso, Amor e Purgatório são os nomes de três quedas d’água que ficam em um mesmo complexo. “Tem um restaurante local que dá para conhecer as cachoeiras e almoçar”, indica Paloma. Outra indicação da atriz são os Poções, que também foram cenário da série. “Bem próximo ao centro histórico, dá para ir caminhando. Você vai subindo e são pequenas piscininhas, ótimas para relaxar.”
Mas a maior unanimidade em termos de beleza é a Lagoa do Japonês, que fica em Pindorama, a quase uma hora de Natividade. “É um lugar exuberante, de água cristalina. Foi um lugar bastante comovente pra mim, foi especial”, conta Renan. “Tem uma caverna, que você pode entrar, desvendar. É a coisa mais linda”, descreve Paloma. Na série, as águas azuis da lagoa aparecem em momentos de tensão, durante rituais protagonizados pelo Escolhido.
“Todo mundo visitou cachoeiras e eu fui o que tive menos tempo para isso. Mas na Lagoa aproveitei que fui lá para filmar e dei um mergulho”, admite o diretor Michel Tikhomiroff.
Cirene destaca ainda a praia do Rio Manoel Alves, de areia branca e água cristalina.
Tradições
Outro patrimônio de Natividade é a suça, dança criada pelos escravos e que se mantém viva. “É uma dança típica de roda, e é muito legal. A cada 15 dias a gente ia lá dançar com eles – eu adoro dançar”, lembra Paloma. “Foi uma troca muito bacana cultural e regional.”
A filigrana, técnica de manipulação do ouro, é outra tradição local. Dizem que quando chove forte, é possível encontrar ouro na sarjeta, trazido das Serras Gerais pela enxurrada. O ouro, aliás, foi o que levou os colonizadores a chegarem ao local e construírem Natividade.
Festas populares, como a do Divino Espírito Santo, mobilizam a comunidade. As ruas ficam enfeitadas de bandeirolas e estandartes vermelhos, representando o Espírito Santo, e uma bandinha recebe os fiéis em frente à igreja. Depois, o grupo sai em procissão. À noite, a festa continua, com um banquete para os devotos com bolos, paçoca de carne, biscoitos e doces.
E por falar em biscoitos, o mais tradicional é o Amor Perfeito, feito pela Dona Naninha. A receita, de quase 300 anos, leva polvilho, leite de coco, manteiga e açúcar.
Lendas e mistérios
Não é só Águazul que tem seus mistérios. Nesse quesito, Natividade conta com uma pessoa importante: Dona Romana é uma referência no misticismo. Desde muito jovem, ela faz esculturas de cimento que ficam na entrada de sua casa, mais afastada do centro. Ela costuma receber turistas e visitantes de braços abertos – e encantou a equipe de O Escolhido.
As esculturas seriam fruto das visões e mensagens que ela recebe. “É uma mulher muito espirtualizada de cura e muitas pessoas vão lá para receber uma bênção”, descreve Paloma. “A presença dela tem a ver com a tradição quilombola que resiste por ali. E a casa dela é um ponto forte na questão de resistência”, conta Renan.
Dona Romana acredita que Natividade está localizada sobre o eixo da Terra e que em algum momento, o planeta vai se transformar. Por isso, estoca alimentos, água, comida, livros e roupas. “Ela traz muita paz, tem uma espirtualidade muito forte e é bonito de se ver”, diz Paloma.
Como chegar
Natividade está a 230 quilômetros de Palmas. A cidade fica entre o Parque Estadual do Jalapão e o Parque Nacional Chapada dos Veadeiros – mas é preciso disposição para encarar as longas distâncias.