Por Marquilia Resplandes
“Eu disse essas coisas para que em mim vocês tenham paz. NESTE MUNDO TEREIS AFLIÇÕES; contudo, tenham ânimo! Eu venci o mundo”.
João 16:33
Estrada tranquila. Brisa de abril. O outono brincava com as árvores do cerrado e pelo rebolado delas era uma brincadeira dançante. Um olho na estrada e outro nelas.
Acácias, angico, cajueiro; pequizeiro, ipê, jatobá… bem vestidas e conversadeiras. O vento futriqueiro me contou tudo aos sussurros.
Mas o céu tinha um estranho alaranjado. Comum para o outono do cerrado. Mas de alguma maneira meu corpo sabia que não. Isso foi manifestado em um arrepio perceptível em meus braços.
De cima de um serra pude ver que havia algo estranho há certa distância na estrada.
À medida que o carro avançava rumo ao destino, era possível perceber galhos de árvores na estrada cada vez mais próximos um do outro. Eu já me preparava psicologicamente para o que veria à frente. Não era intuição. Eram os avisos na estrada.
Eu poderia voltar. Mas motorista que não consegue ver um acidente na estrada não pode dirigir. Olhei para o céu distante. Agora somente cirrus fibrosas: simplesmente nuvens algodão doce, bem altas. Mas eu deveria ter voltado. Porque antes de ser motorista sou uma pessoa sensível.
Brisa suave… árvores dançantes… céu azul. Pelo acostamento vieram três vacas ofegantes e ensanguentadas. Logo ao virar a curva à frente vir o tamanho do estrago daquele acidente. Dois caminhões destruídos: um caminhão semipesado (Toco) carregado de arroz levemente inclinado para a direita sob as árvores do acostamento e uma carreta completamente virada no meio da pista.
Parei há alguns metros e ainda de dentro do carro busquei pessoas no local. Mas para o crescimento da minha agonia eu não conseguir ver ninguém. Meus olhos temiam focar nas cabines dos caminhões.
Eu sou motorista. Todo motorista um dia vai ter que lidar com um acidente de trânsito. E foi o que eu fiz. Automaticamente desci do carro e caminhei em direção à cabine do caminhão mais próximo: o de arroz.
As mãos trêmulas e ensanguentadas alisavam freneticamente o volante. A cabeça inclinada para baixo como quem não quisesse encarar o caos logo à frente. Subi na porta do caminhão e chamei.
– Ei, o Senhor está bem?
– Sim, sim!
Pronto. Eu tinha um parceiro para encarar tudo aquilo. O motorista do primeiro caminhão tinha apenas escoriações nas mãos, braços e rosto devido à quebra de para-brisas.
Deixei-o sentado no chão enquanto ele bebia uma garrafa de água que eu tinha comigo e fui em direção ao caminhão virado sobre a pista. Mas não pude chegar tão perto. Havia um rio vermelho e escorregadio no asfalto. Muitas vacas e bezerros faziam um som ensurdecedor de dor e lamentação. Ao focar na cabine do segundo caminhão percebi que o corpo humano que havia ali já não tinha vida, dada à ergonomia que se apresentava.
Desolada lembrei-me do meu telefone no carro. Havia sinal, que sorte! Liguei para todos os números de emergência da região. Em alguns minutos estavam no local: bombeiros, polícia e paramédicos.
Mas meus olhos contemplaram o máximo de sofrimento que eu já tinha visto nos meus vinte e poucos anos de vida. Sangue jorrando entre as ripas da carreta de gado. Não era sangue humano. Mas provocaram em mim grande tremor.
Algumas vacas que não estavam muito machucadas conseguiram levantar e correr pelo acostamento tentando fugir da morte que havia passado bem a sua frente. Iam por alguns metros e retornaram alvoroçadas e perdidas.
Notei que uma novilha levantou-se, andou e parou na beira da estrada. Contemplou tudo atônita. Não havia machucado visível em seu corpo. Mas estava imobilizada pelo terror do sangue e corpos de seus semelhantes despedaçados e estendidos no chão.
Ao observar a cena silenciosa pensei sobre a possibilidade daquele “bicho bruto” compartilhar de alguns sentimentos humanos que me corroíam naquele momento.
O vento trouxe-me aos ouvidos um abafado, suave e quase fúnebre som feito pelo farfalhar das folhas das árvores. Havia naquele momento uma sintonia entre o olhar aflito daquele animal ali do outro lado da estrada, as nuvens carregadas que se formavam nas bordas do céu e o silêncio que se fez no cerrado.
Entrei no meu carro enquanto algumas gotas pesadas de chuva despejavam-se no para-brisa, ao observar o céu nenhum pássaro se atrevia farejar o forte cheiro de sangue, mas ao olhar para a estrada percebi que pessoas chegavam e iam direto para as carnes espalhadas no chão. Alguns batiam contra a cabeça dos animais ainda vivos com pedra e pedaços de madeira, outros traziam facões para retalhar ali mesmo seus corpos.
Senti a angústia, que antes estava somente na minha mente, se alojar no meu estômago, e ela crescia e subia pela garganta até eu não poder mais segurar, tive que parar o carro e lançá-la ali mesmo no acostamento. Deixei para traz todo o horror do primeiro acidente de trânsito que testemunhei como motorista, mas não pude deixar os efeitos psicológicos que ele me causou. Depois daquele dia não conseguir mais ingerir carne de animais.